Letícia Figuerêdo
3 min readJun 14, 2020

Tem muita coisa acontecendo. No momento eu sinto dor. Mas essa dor eu já sinto há 10 meses.

Aprendi a ignorar o que eu sinto pra sentir os outros.

Não sei dizer ao certo como aprendi isso.

Estou vivendo uma pandemia. Vejo meu pai dar plantões de 18 horas ou de 24 horas, coberto dos pés a cabeça. Vejo meu pai me enviar casos clínicos que eu olho e me pergunto como aquela pessoa ainda respira.

De alguma forma, desde sempre, coloquei a respiração dos outros a frente da minha. Deve ser por isso que sempre quis ser médica. Deve ser por isso que, quando imagino minha futura profissão, consultório não é pra mim. Minha ação me leva pra urgência/emergência, minha sensibilidade me leva pra medicina de família, foi o que me disseram horas atrás.

Perdi minha prima pra o corona vírus. A gente não era muito próxima, mas era minha prima. O pai dela é o meu tio. Ele está morrendo. Ele era desses que não acreditava no vírus, militante do governo que nos leva pro abismo. Está na UTI e não sabe nem que a filha foi internada, muito menos que morreu. É o meu tio mais velho. Família é um negócio estranho.

Isso é um desabafo. Eu vou explodir. Há muito não me sinto assim.

No começo do ano meus pais tiveram problemas. Ok, eu já sou grandinha. Eu descobri um tumor. Eu passei por uma cirurgia. Eu era a mais tranquila de todas. Eu tive que acalmar todo mundo.

Ser forte o tempo todo é difícil.

Eu choro sozinha a noite sem ninguém saber.

Meu tumor foi benigno e raro. 53 casos citados em toda literatura MUNDIAL. Linfangioma. Tirei uma adrenal e estou vivendo ótima com a outra. Amém. Descobri ele por acaso. Há dez meses sinto dor.

Eu choro.

Eu me contorço.

Eu grito.

Sinto que em dez meses ninguém levou a sério. Ou levou? Será que agora não tem volta porque demorou muito?

Agora eu descobri que não tem cura. É autoimune. Meu corpo me destrói. Aos poucos ele vai me destruindo, ele vai me fazendo gritar, ele vai me fazendo implorar pra sumir, pra sair daqui! É possível deixar o meu corpo?

AUTOIMUNE E DEGENERATIVA.

Fazer medicina com o propósito de cuidar e curar os outros e acabar na armadilha de entender o suficiente ao ponto de sofrer duplamente.

A falta de cura me assusta. A dor dói. É redundante mas não passa. Eu tomo remédios que disfarçam as dores de um câncer e não melhoram as minhas. Quantas vezes paramos pra pensar no que um neurotransmissor é capaz de fazer? Eu sei explicar.

Numa semana eu descobri que vou morrer pra sempre assim. Numa semana eu descobri que minha vida vai mudar, daqui pra sempre. Descobri que abrirei mão do que gosto. Ressignificarei minha diversão. Abrirei mão do que me agrada. Viverei na insegurança de perder quem eu amo por não conseguir ser tudo que quero. Mais do que nunca aprenderei a lidar com a dor. E por mais dramático que isso tudo pareça, talvez machuque mais a ideia de perder mais do que já perdi. Viver diariamente com medo de pisar no chão, de andar, de descer uma escada, de correr, de nadar, de fazer tudo que mais amo, de viver.

Nesse ano eu já fui tirei tumor, ja esmurrei a cara de um familiar, já quase abri meus pontos, já tirei faca de quem tentou matar, já tirei faca de quem tentou se matar, já reatei casamento, já gritei de dor, tudo isso dois dias depois de fazer uma cirurgia e tirar um órgão. Em uma semana descobri que a dor que sinto há 10 meses irá durar pra vida toda porque tenho uma doença autoimune e degenerativa. Em uma semana minha prima morreu de covid19. Nessa mesma semana meu tio talvez também se vá de covid19.

Mas eu estou aqui, firme e forte, e pro resto do mundo eu garanto, nada disso está acontecendo.

Independente da minha dor, dos miligramas de diazepam que me deixam inútil, dirigirei até os hospitais, acalmarei primos e quem mais precisar, reconhecerei corpos, quantos precisar. Velarei meu familiares. Abraçarei os que restarem. Enterrarei os que me deixaram.

E no final, responderei:

- Tá de boa, está tudo bem.

Letícia Figuerêdo

"Não existe amor sem medo" Caos instalado e palavras soltas. 28 Natal-RN/BRASIL - 09/01